Resenha: livro "O fundo é apenas o começo", Neal Shusterman

 Olá pessoal, tudo bem? Na resenha de hoje venho comentar sobre minha experiência de leitura com o livro "O fundo é apenas o começo", escrito pelo Neal Shusterman e publicado no Brasil em 2018 pela Editora Valentina.

 "Se a única medida da realidade que se tem é a própria mente... o que acontece quando ela se torna uma mentirosa patológica?"

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"Garotos mortos são postos em pedestais, mas garotos com doenças mentais são varridos para debaixo do tapete."

 A história é narrada por Caden Bosch, um garoto de 15 anos, e se divide em duas partes. Numa parte, Caden está num navio que ruma para o ponto mais baixo da superfície terrestre. Há conflitos na embarcação e ele não sabe em quem pode confiar nem de que lado deve ficar: do papagaio ou do capitão. Nesse navio, nem tudo é como na realidade, a carranca é viva, espaços que parecem pequenos por fora são grandes por dentro, cérebros podem fugir da cabeça de seus donos, etc.

 "— (...) Você é a bússola, Caden Bosch. Você é a bússola!
 — Se eu sou uma bússola, deve ser alguma totalmente inútil — respondo. — Nunca sei onde fica o norte.
 — Claro que sabe — rebate ele. — É que nestas águas o norte vive correndo atrás do próprio rabo."

 Na outra parte da história, Caden é um adolescente comum, que tem amigos, vai à escola e vive com os pais e a irmã mais nova, mas que começa a perder o controle, mentir, sentir-se perseguido, até que os pais precisam interná-lo num hospital para jovens com doenças mentais.

 "— Bom, é que... tem um garoto lá na escola.
 — Sim?
 — Claro que não posso ter certeza...
 — Sim?
 — Bom... acho que ele quer me matar.
(...) Ele fica esperando, e eu me arrependo de ter aberto a boca. Mamãe ainda está na sala falando com vovó ao telefone, e começo a me perguntar se é mesmo vovó ou se mamãe está só fingindo que é ela — falando com outra pessoa, talvez sobre mim, talvez usando um código."

 "Tenho uma premonição fortíssima, quase como uma voz, dizendo que não posso voltar para o nosso hotel. Porque o cara está me vigiando. Porque talvez todos eles estejam. Talvez todos aqueles tipos pinta-braba distribuindo cartões estejam trabalhando juntos."

 Acompanhamos as duas histórias e como elas se misturam em alguns momentos. São tramas que até funcionariam bem separadas: uma como uma fantasia sobre um navio mágico na busca por um tesouro no fundo do mar, a outra como a vida de um garoto esquizofrênico. Uma leitura que não sabemos onde vai nos levar, já que o fundo pode ser apenas o começo.

 "As coisas que sinto não podem ser traduzidas em palavras, ou, se podem, são palavras numa língua que ninguém pode compreender. Minhas emoções têm o dom bíblico de falar em idiomas desconhecidos. A alegria vira raiva e a raiva vira medo e o medo vira uma ironia divertida, como quem salta de um avião de braços abertos, sem ter a menor dúvida de que pode voar, para então descobrir que não pode, e que não apenas pulou sem paraquedas como também está nu, e todos lá embaixo assistem de binóculos, às gargalhadas, enquanto a pessoa despenca em direção a uma morte vergonhosamente trágica."

 Os capítulos do livro são bem curtinhos, o que acabou contribuindo para que eu lesse o livro rapidamente (para meu ritmo atual), pois resolvia ler só mais um capítulo, e mais um, até ver que já havia lido vários. Fiz a leitura em 3 dias pelo Kindle; li metade no primeiro, 25% no segundo e o restante no último dia; foi uma obra que demorou um pouco para me prender, tanto que as partes lidas no segundo dia foram minhas favoritas.

 "O fundo é apenas o começo" é um livro que já ganhou inúmeros prêmios e, embora seja um Young Adult, o autor faz uso de termos relacionados ao mundo náutico (afinal, parte da história se passa num navio) e outras palavras não tão presentes no nosso dia-a-dia. Nesse ponto, ler pelo Kindle foi bom, por ele ter uma função que permite consultar o significado de uma palavra apenas tocando nela. Quem for ler o livro físico, talvez precise consultar o dicionário para entender algumas coisas.

 Falando em entender, essa é uma história que depende muito da nossa interpretação, onde nem tudo é claro ou exato. Os outros tripulantes do navio, por exemplo, tem correspondentes nos internos e na equipe da clínica, mas tive dificuldade de saber a quem cada um corresponde, além de que a história do navio começa antes da internação de Caden na clínica.

 "— Há muitas maneiras de se ver o mundo — diz o dr. Poirot num dos meus dias de maior lucidez, quando sabe que vou assimilar suas palavras, não apenas repeti-las. — Todos nós temos os nossos constructos. Alguns creem que o mundo é mau, outros, que é um lugar fundamentalmente bom. Alguns veem Deus nas coisas mais simples, outros veem um vazio. São mentiras? Ou verdades?
 — Por que está me perguntando?
 — Só estou observando que o seu constructo se desalinhou com a sua realidade.
 — E se eu gostar do meu 'constructo'?
 — Ele pode ser muito sedutor, muito sedutor. Mas o preço por vivê-lo é alto."

 Apesar da linguagem um pouco mais elaborada e da inexatidão de algumas partes da trama, acredito que "O fundo é apenas o começo" cumpre bem o objetivo que o autor comentou buscar em sua nota no final do livro. A história foi inspirada em algo que aconteceu na família do Neal: seu filho passou pelo mesmo transtorno que Caden, tanto que os desenhos que ilustram a obra foram feitos pelo Brendan Shusterman. Neal decidiu escrever o livro para trazer conforto às famílias e aos pacientes que sofrem com doenças mentais e para que quem não tem conhecimento do tema pudesse sentir empatia e compreender um pouco sobre o que é um transtorno mental como a esquizofrenia. Empatia e compreensão que esse livro me proporcionou.

 Tem alguns tipos de enredo que sei que dificilmente vão me convencer: com anjos, personagens desmemoriados ou que não sabem se o que vivem é realidade ou alucinação. Mesmo sabendo que "O fundo é apenas o começo" falava sobre um distúrbio mental, decidi dar uma chance à temática e me arriscar a lê-lo já que é um livro tão premiado. Acredito que fiz a escolha certa, pois a obra me trouxe muitas informações sobre o tema e me fez sentir empatia pelo Caden.

"Não me lembro de quando isso deixa de ser um jogo.
 Não me lembro de quando começo a acreditar que os outdoors estão mesmo me dando instruções."

"Talvez isso devesse ter sido um sinal de que havia alguma coisa muito errada comigo. Ou talvez todo mundo pense coisas doidas, esquisitas. Afinal, eu não chegava a achar que eles estavam mesmo olhando para mim, era só uma ideia bizarra que me passava pela cabeça sem nenhum motivo especial. Nunca impediu que eu lidasse com dinheiro normalmente. Pelo menos, não até recentemente.
 Sempre procuramos os sinais que perdemos quando algo dá errado. Viramos verdadeiros detetives tentando resolver um crime, porque talvez, se descobrirmos as pistas, tenhamos algum controle sobre a situação. Claro, não podemos mudá-la, mas, se conseguirmos reunir um bom número de pistas, isso confirmará que poderíamos ter impedido o pesadelo que se abateu sobre nós, se tivéssemos sido mais astutos. Imagino que seja melhor acreditar na nossa burrice do que crer que nem todas as pistas do mundo teriam sido capazes de mudar coisa alguma."

 Foi interessante ver como eu me identificava com algumas ideias do Caden (algum de vocês já imaginou que seus pais não eram seus pais ou que precisavam pisar só em determinados paralelepípedos na rua ou algum ruim aconteceria?), mas a diferença estava na minha capacidade de "controlar" a minha imaginação e as minhas paranoias, sabendo que eram coisas da minha cabeça e não a realidade. Ainda assim, pode ser algo meio assustador.

 "Revezam-se para cuidar do filho. Que quer ficar sozinho, mas tem medo, e ao mesmo tempo tem medo de não ficar sozinho."

"— Isso é uma babaquice de jardim de infância — afirma Alexa, a garota com bandagens no pescoço.
 — Só se você deixar que seja — responde Carlyle."

" — (...) Mas você não vai estar comigo quando eu for para casa. Vão ser só meus pais e irmãs. E todos pensam que os remédios deveriam ser mágicos, e ficam furiosos comigo quando percebem que não são."


 Gostei muito da forma como a família do protagonista lidou com o problema dele; gostei dos personagens com quem Caden convive na clínica, que tinham outros distúrbios mas acabaram se tornando amigos; gostei da forma como o hospital foi retratado e da mensagem final do livro, que é realista mas esperançosa.

 A edição brasileira tem a capa que considero mais bonita entre todas as edições, uma boa revisão e detalhes de fonte diferente no início dos capítulos, além das ilustrações do filho do autor.

 Mais algumas citações que gostei:

"O signo de Capricórnio tem a resposta para o nosso destino. Tudo tem um propósito. Procure o Capricórnio." (quote presente apenas por ser meu signo)

"A energia solar não está com nada — se fosse possível usar a negação como combustível, ela abasteceria o mundo por gerações."

"Ainda assim, se você precisa ficar a um triz de perder a vida só para gritar por socorro, há alguma coisa errada. Ou você não estava gritando alto o bastante, ou as pessoas na sua vida são cegas, surdas e mudas. O que me leva a pensar que não é só um grito de socorro — é mais um grito para ser levado a sério. Um grito que diz: 'Estou sofrendo tanto que o mundo precisa, pela primeira vez, parar e me dar atenção.'
 A questão é o que fazer em seguida. O mundo para, olha para você estendido numa cama de hospital depois de enfaixarem seus cortes, ou te fazerem uma lavagem estomacal, e diz: 'Tá, sou todo ouvidos.' A maioria das pessoas não sabe o que fazer quando esse momento chega. Razão por que não vale a pena pagar o preço para que chegue. Principalmente porque a tentativa que era para ser frustrada pode dar certo sem querer."

 É uma leitura que acredito que todos deveriam fazer para entender melhor o que é uma doença mental, mas é preciso que o leitor esteja disposto a mergulhar na mente conturbada do protagonista, onde nem sempre se encontra o que se procura.

 "Há um sentido nas coisas do mundo, ainda que só eu possa encontrá-lo."

Detalhes: 272 páginas, ISBN-13: 9788558890625, Skoob. Clique para comprar na Amazon (disponível em físico ou e-book, todos os livros da editora estão disponíveis no Kindle Unlimited):


 Por hoje é só, espero que tenham gostado do post. Me contem: já leram esse ou outro livro do autor?

Até o próximo post!

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15 comentários

  1. Oi..
    Eu queria muito comprar esse livro, pois ele mexe com duas coisas interessantes, a fantasia do menino e a realidade catastrófica dele, ele me lembrou um pouco A Menina que Semeava, história também se passa em dois mundos.
    To curiosa, pois tratar de esquizofrenia com uma pessoa tão jovem me parece um desafio.

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  2. Este livro está na minha lista de leitura tem um tempo, fico cada vez mais curiosa e tentada a passa-lo na frente! Adorei sua resenha!

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  3. oi!
    Eu gostei do livro :D a historia mostra a importância e necessidade de uma discussão mais profunda sobre esse tema..

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  4. Olá!
    Já namoro esse livro há algum tempo, mas ainda não adquiri.
    Eu acho a capa desse livro maravilhosa, instiga demais para realizar a leitura.
    Adorei conhecer sua opinião e os quotes que você trouxe estão ótimos.
    Beijos!

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  5. Olá, tudo bem? Acho interessante como Neal saiu da distopia para um livro tão diferente como esse. Conheço ele por causa desse lado "fantástico" mas tenho super curiosidade com essa obra pois só vejo elogios rasgados como o seu. Sei como é difícil entrar na menta de qualquer pessoa, ainda mais alguém com transtornos mentais. Quero conferir! Adorei a resenha.
    Beijos,
    http://diariasleituras.blogspot.com

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  6. Caden foi uma surpresa maravilhosa.
    Gostei bastante da leitura e de como o autor abordou a esquizofrenia. Fiquei angustiada com alguns capítulos, mas a leitura valeu a pena.

    Sai da Minha Lente

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  7. Olá, Mari.

    É muito bom quando saímos da nossa zona de conforto e acabamos por nós surpreender.
    Eu não conhecia o livro e também não faz meu tipo de leitura, mas fiquei com certa curiosidade para saber como essas duas histórias irão se encontrar. A capa do livro realmente é linda!

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  8. Olá! Ainda não conhecia o livro mas fiquei curiosa. Vou anotar a indicação e estarei conferindo assim que possível. Sucesso com o blog, bjo

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  9. Eu tenho esse livro (que por sinal, ganhei em um sorteio), mas acho que nenhuma resenha me despertou tanto interesse como a sua. Gostei da forma como você narrou os acontecimentos e pelo jeito é aquela obra que todos precisam conhecer. O fato de ter capítulos curtos me anima ainda mais!

    Beijos,
    Blog PS Amo Leitura

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  10. Oi, Mari.
    Estou acompanhando uma série do autor publicada pela Seguinte e estou curtindo muito a escrita dele. Não sabia sobre esse livro! Vou colocá-lo na minha lista de desejados. Gosto de histórias com protagonistas meio fora da casinha!
    beijos
    Camis - blog Leitora Compulsiva

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  11. Eu adorei esse livro, ele mexeu demais comigo, me deixou por dias pensando na leitura. Gostei de ver como foi a sua experiência com a obra.

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  12. Estou apaixonada por essa história é já vou reservar meum exemplar agora mesmo.
    Maravilhoso! Obrigada pela dica !

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  13. Eu lido com o transtorno de ansiedade e o TOC há vários anos e só isso já seria um inferno. Todavia, por conta de várias coisas ruins que aconteceram este ano (incluindo morte na família) eu estou tendo que lutar para superar a depressão há meses. E é muito difícil, pois as pessoas não entendem. Pensam que você pode escolher não estar triste, que tudo depende do seu esforço. Não compreendem que é uma luta diária, com dias bons e outros muito ruins.

    Na minha família tenho um tio que tem esquizofrenia. Só quem tem alguém na família com essa doença tão terrível sabe o sofrimento que todos passam. Quando as crises vêm todos são afetados pela dor. Graças a Deus, faz anos que meu tio não entra em crise. Ele leva uma vida relativamente "normal", se é que se pode dizer assim. Consegue fazer muitas coisas sozinho, mas é como uma criança. Depende de nós. Precisa muito de nós. O amor é essencial para ajudar as pessoas que sofrem de doenças mentais a terem uma vida saudável, o mais feliz possível.

    Este parece ser um livro essencial para as pessoas compreenderem um pouco o que é uma doença mental, para que ajude a diminuir o preconceito horrível que ainda existe. Eu pretendo ler no futuro, embora acredite que ficarei com um nó na garganta ao conhecer os personagens.

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  14. Olá!
    Eu me encantei com a escrita do autor justamente com a proposta desse livro. Amo enredos que abordam esse desconhecido que é o cérebro humano. Ver a dinâmica da família com o Caden também chama atenção.
    Uma leitura que deixa inúmeras reflexões sobre família, amor, compreensão.

    Camila de Moraes

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  15. Eu amei essa historia, mas achei tão complexa e difícil de acompanhar que quando terminei me senti bastante cansada, vou ser sincera ela ativou vários gatilhos em mim e por isso que me marcou mas me estressou bastante, acho que esse livro deveria ser lido por todos, mas quando estão em seu melhor momento.

    wwww.coisasdemineira.com

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